Apontamentos, lugar de tentativa



FB: “but how can this thing be so that you catch the mystery of appearance within the mystery of the making? …
DS: Could one put it like this? - that you’re trying to make an image of appearance that is conditioned as little as possible by the accepted standards of what appearance is.
FB: … I’m always trying through chance or accident to find a way by which appearance can be there but remade by other
shapes.”1


Como dar início a um processo que pretende fazer emergir da repetição alguma forma de diferença, tecendo-lhe uma dobra que a transcenda? Como sublimar no tempo uma figura dele que não apenas o que nele se repete? À primeira vista, o desafio parece começar na mão: onde é que esta começa, para onde deve apontar. Qual é o primeiro ponto de um traço que procura ser mais do que uma linha? Bacon sugeriu que se começasse pelo acidente, uma vez que “what socalled chance gives you is quite different from what willed application of paint gives you. It has an inevitability very often which the willed putting-on of the paint doesn’t give you.”2

É certo que há uma diferença entre Apontamentos e Bacon, uma vez que Bacon falava sobre um corpo - um corpo que, através do acidente, de um processo de desfiguração, invocasse a sua integridade. A diferença, contudo, é apenas formal. Primeiro, porque em Apontamentos podemos tomar o tempo como um corpo também. No caso, as aparas seriam a tinta. Depois, porque também no acidente de Bacon há uma intenção de sublimar a normalidade através da sua evocação. Aquilo que Maíra e Henrique chamam “o reconhecimento da diferença na repetição, ou o que Gabriela Llansol nomeia de “tecer a dobra” - trazer para o consciente novas perspectivas e modos de ação”. Há, então, uma questão fundamental: é possível criar repetição a partir de um acidente?

A resposta não é clara. Desde logo, por culpa do próprio conceito de repetição, que evoca uma série de dificuldades que não são fáceis de ultrapassar. Por um lado, só algo que já tenha sucedido pode repetir-se. Por outro, o facto de já ter sucedido e suceder de novo traz algo de diferente. Repetir é, acima de tudo, instanciar em dobro sem simultaneidade. No fundo, ver, ouvir, ser outra vez. Mas o ver, neste caso, não é virgem - é, pelo contrário, uma forma de regresso baseada na acumulação, na evocação. 

Faz sentido, portanto, que Kierkegaard a tenha definido integrando-a numa hierarquia de disposições temporais distintas: a erótica (descoberta), a melancólica (recordação) e a da certeza (a repetição). Com efeito, a noção de certeza (religiosa, mas acima de tudo ética) é fundamental. Para Kierkegaard, só uma forma de disposição sem dúvidas, em que uma agente oblitere todos os momentos a que é exposto com a mesma disposição pode ser considerada repetição. Desejá-lo é apenas projectar; procurar recuperar algo ido não é senão recordação. 

Assim sendo, a tarefa de Maíra e de Henrique não pode ser vista senão como hercúlea. Na medida em que Apontamentos procura demarcar um território que se ultrapasse através do seu processo de construção - em suma, um plano ritualístico de transcendência -, podemos perguntar quanto disso não é apenas desejo ou nostalgia. É possível planear o encontro da dobra? Certamente que há na arte uma forma de autonomia que passa por postular leis sem justificação. Mas em que medida é que essa leis permitem ultrapassá-la, criando ligações entre a sua tentativa de disfunção e a realidade? Por onde pegar numa mão que pretende ser mais do que uma mão sem lhe tocar?



9/04 — 21,
Guilherme Vilhena Martins

_______________
1 SYLVESTER, David. Interviews with Francis Bacon: Interview 3, 122-123
2 ibid. 11