DISCUSSÃO ABERTA - APÓCRIFA E LOTE

Apócrifa | Lote | EGEU
21.12.19










COMO PODE O TEXTO SER UM OBJECTO ÚTIL?

A perspectiva de inviabilidade económica apresenta à revista literária uma questão fundamental acerca do seu lugar. Há, à primeira vista, uma série de desafios com os quais qualquer projecto editorial se depara: primeiro, organizar-se ao redor de uma ideia sólida; segundo, concretizar essa ideia e levá-la ao público; terceiro, fazer tudo isto sem prejuízo, num contexto em que o número de leitores - ou, como recorrentemente se refere, o mercado - é baixo e não tende a aumentar. A isto soma-se ainda um série de obstáculos secundários, como a decadência da publicação em papel ou as tendências literárias.

Estes desafios representam aquilo a que cada projecto deve à partida responder. Para uns, as dificuldades serão meio de motivação e de estímulo, quais problemas a contornar. Para outros, sintoma e manifestação da disposição do público e objecto de crítica relativamente às suas causas. Latente em ambas as posições está porém a abordagem do problema como um problema prático da literatura, respeitante à relação desta com o público. O problema da viabilidade é, antes de mais, uma pergunta pelo que esta pode fazer para melhorar e, assim, ser bem-sucedida. Contudo, essa questão em particular é, mais do que uma dificuldade prática, uma questão teórica.

Pensar como é que a literatura pode ser viável financeiramente não significa apenas pensar em meios para ultrapassar problemas. Significa pensá-la desde logo como tendo de ser bem-sucedida. Se o desafio passa à partida por contornar dificuldades a fim de determinado projecto ser bem sucedido, então terá de se pressupor desde logo que esse sucesso é uma questão fundamental.

Partindo do princípio que a questão da viabilidade diz respeito à definição de um objecto enquanto produto e sua respectiva utilidade - o seu potencial, o seu uso, a sua aplicabilidade -, a aplicação do problema à literatura ultrapassa, então, a mera necessidade de resolução de uma dificuldade prática. Isto porque o critério da utilidade não parece ser passível de restrição ao mero ponto de vista prático. Por outras palavras, não parece ser possível perguntar como é que um texto (no caso, um produto literário) pode ser um bom produto sem simultaneamente se afirmar - mesmo que involuntariamente - que um texto o deve ser. No fundo, não parece ser possível pensar o problema da viabilidade sem ao mesmo tempo tornar isso também uma questão teórica. De modo que, assim, se levanta uma questão importante: como pode o texto ser um objecto útil?

A dificuldade prende-se acima de tudo pelo facto de uma questão não ser inalienável da outra. Pensar o texto do ponto de vista da sua utilidade enquanto produto não é só submetê-lo a um critério prático - é, antes disso, definir essa mesma utilidade como um critério estético. O que levanta, por si, uma série de outros problemas. Se o texto se pensa como tendo de ser bem sucedido, então de que tipo de liberdade é que se pode falar em termos literários? Se o texto é definido pelo seu efeito, então qual é o papel do escritor? Se as revistas literárias seguem este padrão, então que novidade é que se pode esperar delas? Em todas estas questões se repete, porém, a questão fundamental: como pode o texto ser um objecto útil?