MOUTH TO MOUTH IMPERFECT MYTHOLOGY



friday night on the church steps
we were talking when the lights came up
i’m crying and the muck’s pumping
 


Mouth to mouth imperfect mythology, performance, ritual, exposição, cerimónia, negação, é, antes de todas essas coisas, um processo de investigação da possibilidade de a uma fábula íntima poder corresponder uma mitologia sem pretensões explicativas ou universais, construída a partir de dentro mas sempre em relação com o exterior, suficiente em termos biográficos mas incompleta, sem ambições de expansão para um nível-extra pessoal.
Assumir essa possibilidade é, como em qualquer ritual baseado numa fábula ou com vista ao seu cumprimento, a concessão de uma permissão numa primeira instância, a abertura a entrar e a participar numa dimensão estranha à partida. Um ritual pressupõe a aceitação de um conjunto de princípios, uma redefinição de perímetro. Um ritual baseado numa fábula, por sua vez, pressupõe um perímetro delineador de diferença. A escala dessa diferença será definida pelo perímetro que cada fábula pretende delinear.

Quando se fala de perímetro fala-se naturalmente de uma questão de escala. E há efetivamente várias, desde as celebrações do solstício, de pretensões cósmicas, aos pequenos rituais íntimos de cada qual, onde as linhas se dispensam a qualquer definição.
A performance, por exemplo. A performance de Andy. Ou seguir sempre por uma rua ao invés de outra, tocar nos bolsos antes de sair de casa, começando pelo mesmo lado, ou até olhar para as nuvens como sopros de seres invisíveis, imersos num mar sem fundo. Fazer com uma justificação, com uma resposta, é diferente de justificar-se por fazer e no fazer.

Se uma fábula justificante pretende integrar-se na realidade para explicá-la - sendo o ritual a celebração da explicação -, à fábula íntima, de perímetro esbatido e sem essa pretensão, basta uma descrição isolada, sem obrigação de mais. O que quer que seja é suficiente porque não pretende ser mais. Basta-lhe ser um refúgio, uma fuga, uma consolação. Um sonho, também. Ou pesadelo. Ou os dois. Uma das figuras de Cláudia. Sem pretensões explicativas, o espaço é definido pelo imaginário.

A incompletude, que tem a ver com o facto de não haver na fábula íntima intenções explicativas, de ser também preenchida pelos vazios que deixa, permite-lhe, assim, aplicar-se a diferentes dimensões: a bateria a conduzir a música, o chocalho ou as colheitas sublevadas por Minerva, pregões em onomatopeias, comer a hóstia, amendoins à quinta-feira à noite, todas as semanas, para que o sol continue a levantar, ouvir Joy Division antes dos jogos do Benfica, subir uma cidade pela mesma rua em todos os regressos, dançar até ouvir as árvores.

De certa forma, o fundo de uma fábula é sempre uma sobreposição de forças em que um papel é subvertido, anulado ou simplesmente omitido e substituído ou atribuído a um outro agente, a quem é delegada a responsabilidade e o poder de fazer algo acontecer. A cada fábula corresponde, no fundo, uma proposta de manipulação de verdade, assente numa noção fluida de lógica e forma, uma proposta de reformulação ou subversão do que por norma é visto como verdadeiro.

Se a fábula íntima tem um carácter subversivo, de negação, na medida em que uma fábula é, independentemente da sua duração ou intenção, uma proposta de reformulação dos mitos funcionais, a sua proposta será, porém, sempre uma forma de ilustração da relação entre a expressão de um imaginário próprio e a possibilidade de imaginá-lo, das liberdades a que se permite e das suas limitações. Porque prescindindo do carácter edificante, da pretensão universal, uma fábula íntima é acima de tudo o espelho de um desejo de diferença.
Com efeito, os dois pontos devem ver-se não só complementares mas estruturantes um do outro. Se, por um lado, o que atribui à fábula um carácter subversivo, de negação, é o facto de pressupor a existência do que nega para assumir-se contra ela ou pelo menos propor uma alternativa, por outro essa pressuposição impede que o imaginário seja totalmente livre da sua relação com o mundo, isto é, independente do que quer negar. Torna-o íntimo, por outras palavras.

Neste caso, a intimidade faz toda a diferença, porque é nela que reside a segunda instância da fábula de que falamos: não só a possibilidade de participar numa dimensão estranha, imaginada, mas a também a possibilidade de pensar de que forma o espaço
íntimo se delimita, as fronteiras da imaginação e as relações de força a que está submetida. No fundo, porque é que uma fábula se formula como se formula, por oposição a quê.

É preciso não esquecer que a fábula é, também, um lugar de imunidade e permissão. E é precisamente essa noção de permissão que ilustra a dimensão subversiva, de negação. A relação de forças é sempre definida por uma tensão entre o factual e o imaginário, na medida em que o imaginário, apresentando-se como versão alternativa, pressupõe necessariamente o factual. Só assim pode negá-lo, apresentar-lhe uma versão alternativa, resistente, confortável.

O trabalho de Cláudia e Andy é, aliás, disso um óptimo exemplo. No caso, desenho ou escultura, o papel de cada máscara é diferente mas igual no seu trajecto. O que as une é o facto de serem sempre momentos da mesma mitologia: por um lado, gesto de fuga, que fecha o significado, vendando-o à compreensão de quem está a ver a máscara do lado de fora; por outro, gesto de entrada na medida em que permite, vedado o acesso exterior, um ponto de vista regido por um imaginário e paisagem próprias. A máscara é o símbolo, o corpo mais visível de uma fábula íntima. 

É também, contudo, um vestígio importante do que fica de fora. E é na definição dessa fronteira que se abrem uma série de campos à crítica. O que é que fica de fora? Porquê? Contra o que é que a imaginação se posiciona, contra quem? Como, e como se permite fazê-lo? Porque é que o conforto é ficcional? Que conforto? Que mitos e que limites restringem a libertação? Se a imaginação for um ato de liberdade, de rebeldia, o que dizer de quem está impedido de imaginar? Quem se permite a liberdade de imaginar e quem se obriga a não fazê-lo? O que lhes sobre no imaginário? Porquê?



28/10 — 21,
Guilherme Vilhena Martins