APONTAMENTOS
Henrique Biatto & Maíra Botelho
09.04.21 - 10.04.21 


Texto de Guilherme Vilhena Martins 











Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína[1]


Integrada num ciclo programático do EGEU dedicado a pensar o conceito de repetição, a residência artística, desenvolvida por Henrique Biatto e Maíra Botelho, durante o mês de Janeiro, é a materialização de um projecto teórico, em gestação desde 2017. A presente exposição Apontamentos é o primeiro retrato desse processo.

O título remete para o acto de apontar, afiar cuidadosamente um lápis, separando a casca de madeira do seu interior, recorrendo a uma lâmina e a um processo de gestos repetitivos, que resulta num conjunto de aparas, de tamanhos variados, e um cilindro de grafite, intacto e descarnado.

A exposição inclui três trabalhos – uma tábua de madeira, com uma grelha branca pintada com tinta acrílica, aparas de lápis e três peças de cerâmica; uma projecção sonora em loop; e uma impressão a jacto de tinta com texto – resultado de uma investigação conduzida durante a residência e produzidos posteriormente, como expansões da acção de apontar. O uso do espaço como um local ritualístico que permite a lavoura, dá lugar a uma viagem (mental, ficcional e especulativa), e à possibilidade de recriar um momento suspenso que permite reconfigurar a experiência da percepção e compreensão, deslocando o espectador ao longo de uma linha, entre o tempo do apontar - circular e inaudível - e o presente, povoado pelas ruínas simbólicas de uma destruição como acto de construção e evolução.  

O trabalho ao centro é uma tábua de madeira, composta por cinco momentos, figuras de uma peça que encena, ora o silêncio no momento do apontamento, ora o exercício circular (de repetição) de apontar. A grelha, com sete quadrados, replica a matriz sobre a qual Biatto e Botelho apontaram durante a residência, percorrendo esse circuito duas vezes, deixando os apontamentos delimitar um território dentro do espaço, cujos limites da tábua aqui simulam. As aparas ao longo das linhas, violando os seus limites, são os vestígios de um acto que constitui uma destruição da própria ferramenta de trabalho, expondo um espaço-tempo fluído. As três peças de cerâmica: uma simetria de duas formas de revolução, um molde feito a partir do grafite intacto e dois elementos que se opõem. Uma forma geométrica, uma pirâmide circular truncada, com uma forma orgânica, próxima de um jarro, cria uma dupla peça que acasala, sem nunca se tocar ao manter a distância justa: uma apara. Os objectos sobre uma mesma base reflectem a cartografia do tempo resultante do processo da residência e norteiam a questão: qual o tempo de uma ruína em permanente construção?

A peça sonora, um loop, escondida in plain sight, faz ecoar no espaço os sons capturados durante o acto de apontar, vindos do passado. Os dois pontos de vista dos artistas cruzam e entrecruzam-se durante vinte e dois minutos de tempo directo, a duração do processo de apontar um lápis. Este período fabril permite entrar, circulando, no lugar cronológico da residência, criando uma ficção dessa paisagem sonora.

O trabalho afixado na parede compõe, com o som, um díptico que confronta o registo imaterial do passado, com a apresentação do processo de pensamento, na sua forma primordial, uma enumeração dos vocábulos que compõem a linguagem da exposição e que serviram de base para o texto no verso desta folha. São os blocos de construção do panorama zero que contém ruins in reverse[2]. A ruína dá-se no momento que antecede a sua construção, que nunca termina.

Todas as peças têm uma dualidade, dois pontos de vista (individuais) que se encontram algures a meio: Biatto e Botelho, passado e presente, a fragilidade da grafite e a dureza da madeira, precariedade e efemeridade[3]. O efémero refere-se ao não duradouro, enquanto que a precariedade ao seu estatuto material, o que fica depois do transiente ocorrer. Um acto diáfano e inconclusivo. Todo o trabalho carrega uma incompletude, um abandono que é deixado para nós retomarmos, uma fenda aberta pelo silêncio. O verbo é apontar, não é acertar. É apenas o início de algo inelutável.




[1] Fora Da Ordem. Caetano Veloso, 1991

[2] A Tour of the Monuments of Passaic. Robert Smithson, 1967

[3] History and Precariousness: In Search of a Performative Historiography. Eleonora Fabião, 2012